Em decisão histórica, STF derruba restrição de doação de sangue por homossexuais

Maioria dos ministros votou por tornar inconstitucional a proibição e considerou as regras da Anvisa e do Ministério da Saúde discriminatórias

Uma pessoa doa sangue durante a pandemia de coronavírus em Salvador.

O designer gráfico M.S., de 26 anos, sempre mentiu ao doar sangue. Homossexual, ele é oficialmente proibido pela Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária), por meio da Resolução RDC nº 34/14, e pelo Ministério da Saúde (Portaria nº 158/16) de fazer tal doação, já que ambas instituições determinam que homens que mantiverem relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses não podem fazer a doação. “Negava minha orientação sexual porque acreditava que era por um bem maior, um ato de solidariedade”, diz o jovem. Agora, ele não precisará mais mentir. O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou essa restrição, com a maioria dos votos (7 a 4) nesta sexta-feira considerando-a inconstitucional e discriminatória.

O tema foi discutido na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543, ajuizada em junho de 2016 pelo PSB, e começou a ser julgado em outubro de 2017, mas foi interrompido por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Com a pandemia de coronavírus e os hemocentros de todo país fazendo campanhas para a doação de sangue neste momento de crise, o assunto voltou à agenda do STF. Em 30 de abril, a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu que o STF rejeitasse a ação, ou seja, que sequer analisasse o tema. A Defensoria Pública da União (DPU), em contrapartida, enviou um posicionamento pedindo agilidade no julgamento diante da pandemia da covid-19, que reduziu o ritmo de doações e resultou na queda dos estoques de sangue no país.

Antes do pedido de vistas de Gilmar Mendes, ainda em 2017, o ministro Edson Fachin, relator da ação, votou pela inconstitucionalidade das normas por considerar que elas impõem tratamento não igualitário injustificável. “Não se pode tratar os homens que fazem sexo com outros homens e/ou suas parceiras como sujeitos perigosos, inferiores, restringido deles a possibilidade de serem como são, de serem solidários, de participarem de sua comunidade política. Não se pode deixar de reconhecê-los como membros e partícipes de sua própria comunidade. Isso é tratar tais pessoas como pouco confiáveis para ação das mais nobres: doar sangue”, argumentou, sendo seguido pelos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Agora, no âmbito do plenário virtual, ao devolver o caso para julgamento, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Dias Toffoli acompanharam o relator.

“A anulação de impedimentos inconstitucionais tem o potencial de salvar vidas, sobretudo numa época em que as doações de sangue caíram e os hospitais enfrentam escassez crítica, à medida que as pessoas ficam em casa e as pulsações são canceladas por causa da pandemia de coronavírus”, disse Gilmar Mendes, que também destacou outros julgamentos recentes do STF, como a criminalização da homofobia e da transfobia, o uso do nome social por parte de pessoas transexuais e o reconhecimento do casamento homoafetivo, lembrando que foi preciso que “a Corte interviesse para garantir direitos básicos que qualquer um de nós pode exercer sem óbices”.

O ministro Alexandre de Moraes foi o primeiro voto divergente. Ele votou pela procedência parcial da ação, sendo favorável à doação de sangue por parte de homens gays e bissexuais, desde que o sangue colhido seja utilizado apenas após o teste imunológico, realizado depois da janela sorológica determinadas pelas autoridades sanitárias. Ele foi acompanhando pelos ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello. Os dois últimos consideraram que o STF “deve adotar uma postura autocontida diante de determinações das autoridades sanitárias quando estas forem embasadas em dados técnicos e científicos devidamente demonstrados”.

Preconceito

Há anos, especialistas de saúde no Brasil, como o médico Drauzio Varella, advogam pelo fim dessa proibição, por considerá-la improcedente e preconceituosa, um resquício da epidemia do vírus HIV no país. “Quando ainda nem havia o teste para o HIV, o simples fato de ser homossexual colocava a pessoa em suspeita para doar sangue, por isso se criou nos bancos de sangue essa restrição, que hoje não tem mais nenhum sentido em existir. Primeiro, porque nós temos o teste. Tem gente que diz: ‘Ah, mas ele pode ter tido uma relação sexual dois dias atrás, o teste ainda não ficou positivo, e ele já tem o vírus’. Isso pode acontecer com a mais respeitável das senhoras ou o mais respeitável dos senhores também”, argumenta Varella, que fez um vídeo sobre o assunto em seu portal.

O médico explica que o conceito de “grupo de risco” já não se aplica. O que deve ser levado em conta é o comportamento de risco. “Considerando um homossexual que tem um único parceiro, que não está infectado, qual a chance de ele pegar o vírus da AIDS? É zero. Se você pega um outro homossexual, que tem vários parceiros, mas nenhum deles está infectado, qual a chance de ele pegar? Zero. E aí você pega uma mulher casada com um homem infectado. A chance de ela pegar é maior do que zero. Quem é grupo de risco hoje? Na verdade, o que interessa é o número de parceiros sexuais que você tem e o estado de infecção ou não desses parceiros”, diz.

drag queen Lorelai Fox, sucesso na Internet, também falou sobre o tema nas redes sociais ao constatar que grande parte do seu público não conhecia essa restrição. “Achei assustador e triste que, em um momento em que o Ministério da Saúde está fazendo campanha para incentivar as pessoas a doarem sangue, ainda exista essa restrição. A maioria das pessoas ainda não sabe que não podemos doar, então é importante levar esse debate para fora da bolha LGBT“, diz ela.

Fox afirma que a decisão do STF beneficia toda a sociedade. “O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer o casamento homoafetivo, muito antes dos Estados Unidos, por exemplo. Nessa linha de frente, fomos referência para muitos países. Derrubar essa lei arcaica é uma conquista para nossos bancos de sangue e para o debate global como sociedade. E é mais um marco para as pessoas lembrarem que a gente é igual”.
Fonte: EL PAÍS

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