por Lucas Arraz
Foto: iStock / Stas_V
Apesar do presidente Jair Bolsonaro afirmar na última sexta-feira (19) que falar de fome no Brasil é “uma grande mentira” (veja aqui), dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais (SEI) apontam para um cenário contrário na Bahia. Estima-se que, em 2017, cerca de 3,6% da população do estado vivia com menos de três refeições por dia.
O número representa uma taxa de pelo menos 547 mil baianos que não teriam acesso a uma alimentação básica composta por café da manhã, almoço e jantar. Outras 31 mil pessoas no estado viviam até 2017 com até uma refeição por dia, enquanto 1,8 milhão de famílias teriam renda mensal per capita menor que R$ 178. A quantia, de acordo Secretária de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS), coloca as famílias baianas em uma faixa de extrema pobreza e, portanto, submetidas a algum tipo de insegurança alimentar.
Diferente da fome, a insegurança alimentar é o processo que traduz a falta de acesso a alimentos saudáveis e em ideal quantidade para os seres humanos. Só em Salvador, estima-se que cerca de 41% da população sofra algum tipo de insegurança alimentar. A taxa representa 1,2 milhão de de soteropolitanos, sendo 676 mil em insegurança alimentar leve, 431 mil em insegurança alimentar moderada e 100 mil em insegurança alimentar grave.
Uma pessoa nessa situação, por exemplo, pode passar desde fome à apresentação de quadros de desnutrição, deficiências de micronutrientes e de doenças relacionadas ao excesso de peso e às crônicas não transmissíveis, como as doenças cardiovasculares.
Professora de Nutrição da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC), a nutricionista Michele Oliveira diz que é papel da administração pública realizar atividades que combatam os quadros de má alimentação da população. “O Estado precisa encarar isso como uma questão de saúde e de direitos humanos. Garantir uma boa alimentação para as pessoas é deixar que elas vivam de uma forma digna com tudo aquilo que o cidadão deveria ter. A insegurança alimentar, causada pela falta ou pela má qualidade de alimentos, traz más condições à vida plena que uma pessoa deveria levar”, argumenta a especialista.
A professora criticou a fala do presidente Jair Bolsonaro sobre a fome no país e a decisão do governo federal de extinguir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, que acompanhava a política nacional de segurança alimentar institucional. “A decisão de acabar com o conselho quebra a possibilidade de debater políticas nacionais que proporcionaram a redução da fome no país”.
Ao argumentar pelo fim da fome no Brasil na última semana, o presidente Bolsonaro afirmou que não via mais pelas ruas pessoas esqueléticas. A ponderação, no entanto, é questionada pela professora Michele Oliveira. “A obesidade não é um resultado positivo de combate à fome. Além das 5,2 milhões de pessoas que passam fome no Brasil, a gente precisa entender que as faixas que estão um pouco acima, que ganham até um salário mínimo, não estão seguras do ponto de vista alimentar. Sem a preocupação do governo, como essas pessoas ficam? Negligenciadas?”, questionou Oliveira.
O secretário de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da Bahia, Carlos Martins, classificou a fala do presidente como infundada e sem paralelo com a realidade da população do Brasil. “O país tem mais de 13 milhões de desempregados e isso, obviamente, interfere diretamente no número de pessoas que sofrem de insegurança alimentar grave. É um retrocesso, pois o Brasil havia saído do mapa mundial da fome”, disse.
Segundo o Banco Mundial, a crise econômica dos últimos anos empurrou 7,4 milhões de brasileiros para a pobreza entre 2014 e 2017. Com isso, houve um salto de 20,5% – de 36,5 milhões para quase 44 milhões – no número de pessoas vivendo com menos de R$ 21,20 por dia. “Diante de todos esses dados, essa declaração de Bolsonaro só pode ter sido dada por alguém que não conhece a realidade do Brasil, em especial a do Nordeste do país e do semiárido brasileiro”, retrucou Martins.
O Governo da Bahia, por meio da SJDHDS, mantém duas unidades do Restaurante Popular, ambas em Salvador, localizadas nos bairros do Comércio e da Liberdade, onde são oferecidas em torno de 5 mil refeições por dia, a R$ 1,00, sendo que crianças de até cinco anos não pagam.
No ano de 2019, entre os meses de janeiro e julho, foram servidas 342 mil refeições no Restaurante Popular do Comércio e 300 mil refeições na unidade da Liberdade, totalizando 642 mil refeições até o momento.
A maior parte dos produtos utilizados nos restaurantes são da agricultura familiar, gerando renda para as comunidades agrícolas, além de assegurar a qualidade nutricional dos alimentos comercializados nas unidades.
DISCURSO DO PRESIDENTE
A fala inicial de Bolsonaro sobre a fome no país foi uma resposta a uma representante do jornal espanhol El País, em Brasília, que disse que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, havia manifestado preocupação com a desigualdade no Brasil.
Após repercussão negativa da afirmação que a fome no país era uma mentira, Bolsonaro, ao final de um evento em comemoração ao Dia Nacional do Futebol, amenizou e reconheceu que “alguns passam fome”. O presidente ainda declarou que era inadmissível ocorrer esse quadro em um país com as características naturais do Brasil, com muita disponibilidade para o plantio.